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Author: HugoCrema


Entediado arrastava a obrigação de se manter sentado até que terminassem. As duas moças pareciam completar-se na atividade a que o arrastaram pelo fim da tarde inteira. Uma pintava-lhe o rosto, outra escolhia um traje que coubesse ao cômico do feito. Um resultado patético se seguiria, a apoteose humilhante de fitarem-se juntas ao espelho quando do término da tortura: o chá de cadeira, um tal de “vira o rosto, não se mexa” e os repuxes de cabelo para os lados; para o ledo penteado de mulher.

Elas mesmas se cobriram dos ternos do pai, o que no mais se figurou tarefa pouco duradoura. O desenho tipificado dos bigodes abaixo do nariz, os cabelos em trança revolvida e escondida no chapéu... Tanto fazia. Era um prazer observá-las assim, entretanto, como estivessem tanto mais femininas num traje que as continha e salvava do explícito a sua natureza de sensualidade. O velamento já termina por deitar maior relevo àquilo que se conhece – é bem verdade.

Pediram-lhe que tirasse a roupa. Não se fez sem pejo, mas deu-se. As duas se incumbiram de vesti-lo. O sutiã suspenso pelos seios de papel bastou à encenação. Uma delas gracejou da calcinha, que não foi precisa. A pouco estaria livre, portanto. Reparou naquela que o vestiu certa pitada de inveja feminina. Até lhe cai bem, disse ela. O corpo magro respeitava o talhe que àquela não convinha perfeitamente. Terminou? Como se sente?

Nada de extraordinário. Era o mesmo. Insignificante o fato de o terem travestido. Nem um rastro de alteridade se pintou ali branco no preto. Pensou-se extenuado de tédio, o que agravou seu sentimento de repúdio pela idéia de fazê-lo uma segunda vez. Não passa de um vestido, Clara, isto aqui.

Buscaram o espelho. A princípio não dera grande atenção à sua figura. Achou-a ridícula e extravagante. Todavia, ao tempo que lhe bastou a fim de que se acostumasse consigo próprio, aferrou-se em fitar-se. Reparou que o rosto do espelho pouco a pouco destoava do que tinha em mente como sendo o seu. A maquilagem o transmutara numa coisa outra. Viu que o corpo se tomava de formas estranhas nunc’antes vistas. Sequer imaginara que tal se desse possível. Era moça de todo. O sangue não lhe dera matéria que empregasse a fim de se impor como gênero. À altura de seus vinte anos permanecia quase imberbe, sujeito à forma pueril do rosto. E o vestido... Era por certo uma menina feia, mas era; sem atrativos vistosos e latentes, como um broto de moça. Envergonhou-se. Sentiu-se mal de ter-se descoberto, assim, na alteridade. Elas se riram, deram-lhe um cigarro, atuavam masculinas, pediam-lhe correções de postura que não respondia de todo, sabe-se lá por que. Teve medo de quando reouvesse das roupas o seu eu nelas contido...

Dentro em pouco se deteve no pensamento. Ora messa, eu sou macho, não duvido, isto é besteira. E tanto mais acusador seria haver dúvida em função do que fosse. Aceitou a personagem, fez de palco o tapete da sala junto delas. Divisou por aproveitar-se do momento para arrematar aquela com que se lembra de já se ter deitado. A preferência da outra era a da sua, e não valia o intento. À Clara, porém, quem sabe não valesse uma segunda tentativa, não é mesmo? Quem sabe... Esquivou-se do espelho, embarcou noite adentro, bebeu, confundiu-se, enfim, nalguma delas. Não se sabe bem no que, nem como, mas de chofre era uno consigo, mas diferia de seu estado comum, mesmo estivesse bêbado... Encontrou-se mesmo assim.

1 comentários:



  1. Anônimo

    Acho que foi Chico Buarque que escreveu que "um artista se traveste mil vezes para interpretar mil vezes a si mesmo".

    Belíssimo conto.

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