Entediado arrastava a obrigação de se manter sentado até que terminassem. As duas moças pareciam completar-se na atividade a que o arrastaram pelo fim da tarde inteira. Uma pintava-lhe o rosto, outra escolhia um traje que coubesse ao cômico do feito. Um resultado patético se seguiria, a apoteose humilhante de fitarem-se juntas ao espelho quando do término da tortura: o chá de cadeira, um tal de “vira o rosto, não se mexa” e os repuxes de cabelo para os lados; para o ledo penteado de mulher.

Elas mesmas se cobriram dos ternos do pai, o que no mais se figurou tarefa pouco duradoura. O desenho tipificado dos bigodes abaixo do nariz, os cabelos em trança revolvida e escondida no chapéu... Tanto fazia. Era um prazer observá-las assim, entretanto, como estivessem tanto mais femininas num traje que as continha e salvava do explícito a sua natureza de sensualidade. O velamento já termina por deitar maior relevo àquilo que se conhece – é bem verdade.

Pediram-lhe que tirasse a roupa. Não se fez sem pejo, mas deu-se. As duas se incumbiram de vesti-lo. O sutiã suspenso pelos seios de papel bastou à encenação. Uma delas gracejou da calcinha, que não foi precisa. A pouco estaria livre, portanto. Reparou naquela que o vestiu certa pitada de inveja feminina. Até lhe cai bem, disse ela. O corpo magro respeitava o talhe que àquela não convinha perfeitamente. Terminou? Como se sente?

Nada de extraordinário. Era o mesmo. Insignificante o fato de o terem travestido. Nem um rastro de alteridade se pintou ali branco no preto. Pensou-se extenuado de tédio, o que agravou seu sentimento de repúdio pela idéia de fazê-lo uma segunda vez. Não passa de um vestido, Clara, isto aqui.

Buscaram o espelho. A princípio não dera grande atenção à sua figura. Achou-a ridícula e extravagante. Todavia, ao tempo que lhe bastou a fim de que se acostumasse consigo próprio, aferrou-se em fitar-se. Reparou que o rosto do espelho pouco a pouco destoava do que tinha em mente como sendo o seu. A maquilagem o transmutara numa coisa outra. Viu que o corpo se tomava de formas estranhas nunc’antes vistas. Sequer imaginara que tal se desse possível. Era moça de todo. O sangue não lhe dera matéria que empregasse a fim de se impor como gênero. À altura de seus vinte anos permanecia quase imberbe, sujeito à forma pueril do rosto. E o vestido... Era por certo uma menina feia, mas era; sem atrativos vistosos e latentes, como um broto de moça. Envergonhou-se. Sentiu-se mal de ter-se descoberto, assim, na alteridade. Elas se riram, deram-lhe um cigarro, atuavam masculinas, pediam-lhe correções de postura que não respondia de todo, sabe-se lá por que. Teve medo de quando reouvesse das roupas o seu eu nelas contido...

Dentro em pouco se deteve no pensamento. Ora messa, eu sou macho, não duvido, isto é besteira. E tanto mais acusador seria haver dúvida em função do que fosse. Aceitou a personagem, fez de palco o tapete da sala junto delas. Divisou por aproveitar-se do momento para arrematar aquela com que se lembra de já se ter deitado. A preferência da outra era a da sua, e não valia o intento. À Clara, porém, quem sabe não valesse uma segunda tentativa, não é mesmo? Quem sabe... Esquivou-se do espelho, embarcou noite adentro, bebeu, confundiu-se, enfim, nalguma delas. Não se sabe bem no que, nem como, mas de chofre era uno consigo, mas diferia de seu estado comum, mesmo estivesse bêbado... Encontrou-se mesmo assim.


I know the ways of pleasure, the sweet strains
George Herbert

Ontem pescamos de um jeito novo, eu sugeri que ao invés de espancarmos a superfície do rio com um galho grosso de madeira e esperarmos um peixe aparecer boiando em um lugar que não fosse fundo demais para irmos buscar, pegássemos um galho mais fino e palitássemos a água onde supostas bolhinhas aflorassem. O Robinson aprovou de cara, andava meio desanimado com comer carne porque o método antigo era muito pouco eficiente mas concordou. Só comendo cocos e folhas já estava ficando magrinho, e a esta altura não conseguia nem sair e coletar: minha responsabilidade fazer tudo, enquanto ele ficava na cabana, trançando a corda com que amarrará os troncos da jangada com que nos arrancará a todos aqui. Eu, ele e tenho a impressão de que planejou levar um crânio dos que encontrou na caverna como carranca para proteger a jangada. Crânio ou fêmur: o Robinson tem muito apego a esses dois, dorme com eles perto e com certeza acha que protegerão nossa fuga.

Outro dia o meu amigo explorador intrépido rasgou o pé de fora a fora com um espinho, que não viu, em que pisou no meio da mata. Três dias de febre, tudo pro Robinson o traumatiza com três dias de febres lancinantemente tropicais. Só veio cura quando usou um metro da corda de fibra dele lá pra pendurar o crânio logo acima das folhas sobre as quais ele dorme. E sob a supervisão daquele que foi num passado remoto algo entre humano deformado e macaco se curou. Fugir fugir ninguém seriamente deseja. Uma das primeiras coisas que ele fabricou - antes mesmo do porrete com que afugenta cobras e extermina babuínos - foi uma rede; tanto é que quando primeiro espreitei sua sombra na praia, só vi uma perna igual à minha, mas sem pelos, pendurada de uma rede.

O Robinson adora aqui, só não consegue mais ficar depois de ver a caverna tão clichê e que realmente existe. Quer que eu vá junto para me exibir na corte da rainha e eu nem sei se quero ir. E ele também não, fica atrasando a corda, desfiando à noite achando que eu não vejo. Preferir febre tropical a gripe soturna. O Robinson não tem medo de mosquitos, mas tem medo de encontrar o que veio procurar, sob o pretexto de ter naufragado pelos mares do sul. Tudo pretexto, até a caverna com a qual ele faz de conta que se horroriza. Um buraco na pele da montanha, um buraco que guarda um pântano na barriga, vagamente o incomoda contra um horizonte azul e areia branca que reflete seu sorrisão. Quem sabe ele não vê silhuetas de homens nanicos no canto dos olhos; homens cujos dentes apodrecerão fincados nas carnes de alguém que já foi lorde? Tudo pretexto, vir aqui e ir embora de mãos abanando. Ontem também ele me ensinou a jogar xadrez, com umas peças que improvisou com diversas frutas, jogadas fora às pressas assim que, atraindo insetos, começaram a feder. Hoje ele me esbravejou contra a frustração dele: embarcamos amanhã. Um labirinto por outro e estar atracado a si mesmo é nada mal para quem a fuga é o caminho.